A jovem senhora que completou ontem 463 anos de vida continua a encantar e atrair a todos que aqui chegam para passear ou fixar residência. Mesmo com o charme um tanto desbotado pela negligência de seus últimos administradores e certa complacência dos seus habitantes, continua com a mesma magia que provavelmente foi inserida no seu código genético durante a sua longa gestação. Sim, Salvador não foi fundada. Ela nasceu em 29 de março de 1549, quando aqui chegou Thomé de Souza e sua comitiva de 2.000 pessoas em seis embarcações: três naus, duas caravelas e um bergantim. Nasceu cidade e capital sem nunca ter sido província e, por muitos anos foi a maior cidade das Américas.
Cidade festeira, um dos melhores carnavais do Brasil, celeiro de artistas que muito tem enriquecido a música a literatura e as artes plásticas, além de ser uma eterna fonte de inspiração para muitos outros, já na sua gestação que começou em 1510 quando o naufrágio de um navio francês deixou por aqui Diogo Álvares, o Caramuru que se casou com a índia Catarina Paraguaçu. Iniciou aí a mistura das raças.
Em 1536 chegou por aqui o primeiro donatário, Francisco Pereira Coutinho, português de maus bofes, cruel e arrogante no trato. Numa das tradicionais revoltas indígenas foi posto a correr e por um bom tempo ficou em Porto Seguro com Caramuru. Ao retornar, já na Baía de Todos os Santos o barco enfrentou uma tormenta e chegou a deriva na Ilha de Itaparica. Os índios recolheram os náufragos, libertaram Caramuru e fizeram Francisco Pereira Coutinho prisioneiro, retalharam-no e forraram o estômago. Se comeram cru ou cozido não sei, mas acho que foi a primeira moqueca baiana.
Thomé de Souza na sua comitiva numerosa trouxe trezentos e vinte nomeados com salários pagos. Iniciava aí a tradição do inchaço no serviço público.
Mas como não só de pão vive o homem, em uma de suas igrejas o Padre Vieira proferiu seus famosos Sermões em sua ruelas irregulares passaram os jesuítas, inclusive Manoel da Nóbrega e no Theatro São João, Castro Alves fez do palco sua tribuna e em versos denunciou a crueldade do comercio de escravos e nos lembrou que a praça é do povo.
Os holandeses que por aqui passaram em 1598, 1624-1625 e 1638, durante o dia construíram o Dique de Tororó e à noite, pois ninguém é de ferro fabricavam com as mestiças, algumas de olhos verdes outras de olhos azuis (quem sabe influencia da fase da lua) morenas frajolas que desfilando anos depois pela Baixa dos Sapateiros com seu gingado sensual realçado por sua cor peculiar e exalando sensualidade inspiraram Ari Barroso a compor um dos seus mais tradicionais sambas: Na Baixa dos Sapateiros.
Do Pelourinho da elite e ao mesmo tempo local de castigo de escravos à decadência onde os outrora suntuosos casarões que abrigavam a nobreza se transformou em moradia de malandros, vadios e prostitutas, posteriormente recuperado e a algum tempo retornando ao seu ciclo decadente a espera de uma nova fase de esplendor saíram alguns personagens famosos de Jorge Amado, entre eles Vadinho de Dona Flor e seus Dois Maridos.
Salvador ainda hoje vê desfilar por suas velhas ruas de pedras cabeça de nêgo ou nas suas avenidas asfaltadas, nas suas inúmeras favelas ou nas mansões o contraditório do branco e negro do rico e do pobre da madame com roupa de marca famosa a belas negras e mulatas com suas roupas de “baianas” ornadas com seus panos de renda alvos como a pureza dos sentimentos e nos pescoço os multicoloridos balagandãs que Caymmi nos falou. Por suas ruas também se cruzam os católicos, os protestante, os evangélicos as testemunhas de Jeová, o espirita Kardecista o adepto do candomblé e o da umbanda em perfeita harmonia ecumênica.
Salvador do Ylê, dos Filhos de Ghandi, de Gregório de Mattos o Boca Maldita, de Caetano, Bethania, Gal, Gil, Moraes Moreira, de Ivete, de Bel, de Carlinhos Brown, de Mario Cravo, de Rui Barbosa, de Jorge Amado, de Armandinho, de Caribé, de Cuica de Santo Amaro, de Caymmi, de ACM, de Raul Seixas e de muitos outros que mesmo não nascidos aqui encontraram a força, a coragem e o motivo de viver e, em prosa, ou verso, em ferro, mármore, cimento ou fotos louvam a sua deusa que debruçada na Baía de Todos os Santos, continua a ser a musa inspiradora de todos nós.
Não importa se estamos na Igreja do Bonfim ou na Lagoa do Abaeté, no Mercado Modelo tomando um caldinho com pinga ou orando na Igreja de São Francisco ornada a ouro. Tomando banho de mar no Porto da Barra ou passeando no Campo Grande. Ouvindo em sotaque cantante um garotinho dizer painho/ mãinha ou então ouvirem autêntico baianês: “qualé meu broder, fica ligado...” O que importa é que Salvador apesar do seu crescimento desordenado do descaso de seus gestores lhe maltratarem tanto ela estará sempre de braços a abertos para receber todos aqueles aqui quiserem vir. Com as bênçãos do Pai Oxalá e fitinhas do Senhor do Bomfim.
Axé Salvador.
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